Mulheres, cineclube e rock n’ roll. Foi em torno desta tríade que girou a Sessão Roque Pense no Cineclube Buraco do Getúlio, em Nova Iguaçu (RJ). O evento, realizado no dia 12 de outubro de 2013, foi uma prévia do Festival Roque Pense, que acontece em Mesquita, na Baixada Fluminense (RJ), de 18 a 20 deste mês.
Com o slogan “Mulheres, guitarras e novas ideias”, o festival se contrapõe – através das guitarras – à cultura sexista em nossa sociedade. O sexismo é a prática de se privilegiar determinado gênero ou orientação sexual em detrimento de outro; e também, de se isolar práticas sociais relativas a um só gênero (ex: cor azul = masculino e cor rosa = feminino; brinquedo de menino = carrinho; brinquedo de menina = boneca). Sendo assim, em uma sociedade machista, o sexismo acaba funcionando de forma a rebaixar o papel das mulheres em diversos âmbitos.
O Festival Roque Pense surge, então, para debater o lugar da mulher na sociedade, utilizando-se de signos de empoderamento de funções relegadas ao mundo masculino. Os rapazes também participam, é claro: do contrário, o sexismo apenas estaria sendo reproduzido, ainda que em forma de oposição.
Giordana Moreira, uma das produtoras do festival, iniciava o evento no Buraco do Getúlio ressaltando a importância da busca por igualdade entre sexos no trabalho, na cultura, na vida social. O Bar do Ananias (casa hospedeira do cineclube) começava a encher, tanto do lado de dentro quanto do de fora. O evento acontece em uma rua de Nova Iguaçu repleta de bares, todos com música ao vivo. Porém, ao contrário do repertório basicamente tomado de covers de MPB e pop-rock nacional, o Cineclube Buraco do Getúlio oferece shows com música autoral.
Neste dia, a prévia do festival trazia a banda Canto Cego, e mais exibições de curtas-metragens e poesias. A temática de empoderamento feminino permanecia com os curtas: Resposta de mulheres: nosso corpo, nosso sexo, da francesa Agnès Varda, traz várias mulheres falando sobre seu corpo e sexualidade, ao responderem à pergunta “O que é ser uma mulher?”. Espalhadas pelo ar, de Vera Egito, retrata o encontro – em tragadas de cigarro na escada – de uma mulher em crise de relacionamento e vizinhas adolescentes descobrindo a sexualidade. [Re]construção, de Yasmin Thayná, é um curta experimental, incluído no evento por tratar-se de produção de uma mulher. “Não precisa obrigatoriamente possuir temática feminina, o fato de ter sido feito por uma mulher já possibilita a participação”, me explicava Paulo Vítor, um dos produtores do festival.
As exibições dos curtas eram entrecortadas por performances poéticas de Janaina Tavares (produtora do Sarau V), Luana Pinheiro (uma das produtoras do cineclube, que leu poemas de Aline Corssais) e Joana Ribeiro, que apresentou o poema-rap Meu corpo é o poder, inspirado no caso recente do polêmico projeto de dissertação de mestrado sobre a funkeira Valesca Popozuda, My Pussy é o poder, de Mariana Vedder. Compunham também o evento a banquinha de produtos culturais do Sebolinha Livros e Revistas; um lançamento do zine poético Desmaio Público e uma performance teatral do ator Emerson Noise. Além disso, as DJs Pimenta Pime e Karina Gómez discotecavam nos intervalos, com repertório roqueiro variado.
Mas, o festival também é musical. E é em torno da música que giram movimentos sociais e de protesto, em verdadeiros rituais sociais marcadores de lutas simbólicas e negociações de hábitos e valores. É a partir deste caráter ritualístico de enfrentamento que se situam eventos como o Roque Pense e demais festivais de rock feminino (como por exemplo, o Girls On Drums, o Ladyfest e o Festival de Rock Feminino). Ao posicionarem a mulher como protagonista, estes festivais utilizam a forte linguagem comunicacional da música (neste caso, do rock n’ roll) para atuarem de forma ativa nestas negociações de valores referenciais ao feminismo e antissexismo.
A apresentação musical da noite era a banda Canto Cego. Performática, a vocalista (Roberta Dittz) movia-se constantemente, dançando, pulando, agachando, subindo e descendo do palco. Sua voz é grave e o visual faz referência à cultura teatral-circense, algo similar a uma colombina pós-moderna usando dreads. O grupo conta com baixo, bateria e guitarra, lembrando os momentos mais roqueiros da finada banda Manacá; porém, com menos referências à música folclórica brasileira. A performance de Roberta Dittz evoca o empoderamento da mulher não apenas através da linguagem transgressora do rock n’ roll, mas também de linguagens culturais diversificadas, como o teatro e a poesia.
No show, a Canto Cego encenou uma poesia musicada (Inventados, um poema-canto), remetendo também à banda Cordel do Fogo Encantado, onde o vocalista, Lirinha (hoje em carreira-solo), apresentava uma performance poética-teatral-catártica no palco. E é exatamente esta catarse produzida pela união de música, poesia e teatro que a Canto Cego evoca. Antes de apresentar a música “Maestrina”, a vocalista ressaltava: “essa música é um pedido de desaconchego e desconforto para todos os que não conseguem sair da rotina e se sentem enclausurados com isso”.
É exatamente esta sensação de desaconchego que a banda produz: a guitarra de Rodrigo Medeiros emitia um solo ruidoso, onde o guitarrista, ao invés de buscar uma profusão de notas e acordes, prefere segurar o ruído em poucas e repetidas notas, produzindo uma espécie de visceralidade sonora. É esta característica econômica da banda, ao recusar firulas, investindo em riffs pontuais e em notas “presas” (mas não aprisionadas), que, aliada à performatividade teatral da vocalista, possibilita a catarse da Canto Cego, simulando desaconchego, desconforto e caos, tirando o ouvinte de seu lugar de comodidade; desterritorializando o conforto e apatia que muitas vezes a rotina produz.
A Canto Cego sugere uma selvageria musical visceral. Seria, por exemplo, o oposto da pompa de muitos artistas da música clássica, que, ao entupirem suas composições de notas, acordes e instrumentos diversos, sugerem algum tipo de civilidade; uma ideia de sociedade “desenvolvida” e “rebuscada”. Em oposição, estilos musicais com poucos acordes e notas, como por exemplo, muitas músicas africanas, foram, durante séculos, entendidas como uma alusão à selvageria, uma sociedade “primitiva”, mais ligada à expressão rítmica corporal (há exceções). Por mais que discordemos de tais associações, elas costumam funcionar, até hoje, de forma predominante na valoração (ou desvalorização) de estilos musicais diversos. Na Canto Cego, a selvageria musical e econômica da banda valoriza a poesia e teatralidade, criando uma sonoridade visceral.
A banda apresentou no show uma ótima versão da canção Zé do Caroço, de Leci Brandão, que casa muito bem com sua proposta de visceralidade poética e desterritorializante. A letra da música relata a história verídica de um policial aposentado (José Mendes da Silva), residente no morro do Pau da Bandeira, no bairro carioca de Vila Izabel. José Mendes era conhecido como Zé do Caroço, e enfrentou problemas na época da ditadura militar, ao colocar um alto-falante na laje de sua casa, transmitindo notícias aos moradores das redondezas. Uma denúncia à polícia feita pela esposa de um militar trazia a reclamação do barulho de Zé do Caroço, que a incomodava durante sua novela. A denúncia rendeu uma ação policial no morro e uma censura ao meio de comunicação alternativo de Zé do Caroço. A letra relata, então, o nascimento de um novo líder comunitário: “Está nascendo um novo líder / no morro do Pau da Bandeira”.
A postura engajada da Canto Cego continuava: eles apresentavam a canção Fábula de uma granada, uma “homenagem irônica à guerra e a todos que a cultivam”. Já em Contra-Canto, Roberta Dittz anunciava que “nosso contracanto é para todos os que correm atrás de desejos coletivos. Para tudo o que for hostil, esse é o nosso contracanto”. A letra reafirma o discurso: “Vamos reagir a hostilidades com afetos fartos”. A vocalista encerrava a música repetindo: “não deixem que nos calem”. A plateia acompanhava o show atenta, dançando e performatizando a catarse sonora. A apresentação se encerrava com a banda anunciando a venda de seu CD independente a 5 reais (vendendo dois logo de cara). Diego Bion, um dos produtores do Cineclube Buraco do Getúlio, dava um recado à Canto Cego: “voltem sempre, o buraco está sempre aberto”. Magrão, baixista do grupo, bradava ao microfone: “A baixada é foda!”.
Magrão tem razão: o Festival Roque Pense continua nesta sexta-feira (18/10) e vai até domingo (20/10), com debates, oficinas, jam session feminina de skate e apresentações musicais como Algoz (RJ), Medialunas (RS), Santa Claus (SP), Subburbia (PR), Luvbugs (RJ) e Far From Alaska (RN), no Paço Municipal de Mesquita (RJ). Saiba mais no site do Roque Pense, ou em seu perfil no Facebook.