Em tempos de disputas de poder sobre corpo, individualidade e principalmente o papel do patriarcalismo na sociedade, casos como o da cantora Madonna são bons exemplos para pensarmos negociações e hierarquias de gênero. Após a polêmica Marcha das Vadias realizada na cidade do Rio de Janeiro em 27 de julho de 2013 (um sábado friorento), a canção “Like A Prayer” parece ressurgir com impressionante força simbólica. Contando a história de uma jovem apaixonada por deus, a canção apresenta o amor religioso de forma dúbia, oscilando entre devoção e amor sexual.
Não apenas trechos da letra, mas até a própria voz sensual de Madonna parecem ressignificar o que seria ali um símbolo unicamente religioso. Porém, com o lançamento do videoclipe, o que era dúbio tornou-se nítido: nele, a cantora beija a boca de um jesus negro e performatiza a música perante cruzes de madeira em chamas. Ao passar na televisão, o videoclipe causou furor perante entidades religiosas em todo o mundo, que pediam sua proibição.

Madonna ressignifica a narrativa convencional das figuras femininas em nossa sociedade. A musicóloga (e feminista) Susan McClary (1991) relata que tais narrativas são um pano de fundo fértil para as tragédias, onde suas personagens se deslocam desses papéis e terminam quase sempre em um fim trágico. Sobre Madonna, McClary afirma:
“A alusão de Madonna a imagens do passado não deve ser entendida como paródia. Algumas das figuras históricas que ela personifica são vítimas de tradições da ópera e da cultura popular em que o preço para sua sexualidade é a morte” (p. 166).
McClary ressalta que Madonna invoca ao mesmo tempo a imagem da virgem e da prostituta, ao ostentar “crucifixos e rosários como acessórios; e seu vestido abertamente erótico e seu comportamento têm consistentemente confundido os termos dessa oposição binária padrão”. A autora analisa o clipe de “Like A Prayer”, explicando que nele, Madonna toca em uma tradição católica suprimida ao longo da história: a da mística feminina em religiosas como Santa Teresa, que alegava ter experimentado uma relação divina e sexual com Cristo:
“Nos escritos de Santa Teresa, o êxtase religioso é descrito por imagens de êxtase sexual, onde a intensidade de seu relacionamento com a divindade só poderia ser expressa verbalmente a outros seres humanos através de metáforas de submissão, penetração e inclusive, o orgasmo” (p. 164).

Mas não é apenas referenciando a sexualidade religiosa de Santa Teresa que Madonna polemiza em “Like A Prayer”. A cantora reconfigura também o papel subserviente feminino em nossa sociedade. Aqui, o poder sobre o corpo e a sensualidade da mulher é invertido. Ao dançar de forma sensual, Madonna não assume um papel de submissão, mas de poder. McClary ressalta um trecho do clipe onde a cantora performatiza tal poder e êxtase sexual, ao mesmo tempo profano e de amor religioso:
“Um dos momentos mais marcantes do vídeo ocorre quando Madonna dança de forma provocante na frente das cruzes queimando, desafiando agressivamente aqueles que queimam cruzes para contê-la e a sua sexualidade também. E, de fato, Madonna deu testemunho de ter planejado originalmente apresentar tal cenário: ‘eu tinha todas essas ideias sobre mim fugindo com o negro e ambos levando um tiro pelo KKK” (p. 165).
O que ressalto aqui é que o clipe de “Like A Prayer” é significativo de como que uma canção pop – e seu videoclipe – podem ganhar conotações políticas e libertárias em um mundo de moralismo cada vez mais violento. Em tempos de Marcha das Vadias (e reinvindicações como “meu corpo, minhas regras”), onde o corpo feminino exposto e a quebra da imagem de uma santa (em uma performance extremamente polêmica) causam furor em nossa sociedade em brados de “respeitem nossos símbolos”, Madonna, em 1989, queimava cruzes e quebrava simbologias em sua marcha vadia-sexual midiática em forma de videoclipe. Reconfigurando – através da música – o papel da mulher, a artista nos deixa um belo exemplo da importância das lutas pelo respeito ao corpo e a individualidade feminina. E deixa também para a história um belo – e polêmico – videoclipe.

* Em tempo: “Like a Prayer’ foi adicionada a várias listas de melhores vídeos. Alcançou a primeira posição na lista da MTV, “100 Videos That Broke The Rules” em 2005, e para o vigésimo quinto aniversário da MTV, seus telespectadores o votaram como o “Most Groundbreaking Music Video of All Time”. O vídeo também foi colocado na vigésima posição na lista da Rolling Stone, “The 100 Top Music Videos” e na segunda posição na da VH1, 100 Greatest Videos. A Fuse TV também nomeou “Like a Prayer” um dos dez “Videos That Rocked The World”. Em uma votação feita pela Billboard, “Like a Prayer” foi votado como o segundo melhor vídeo musical dos anos 80, perdendo apenas para “Thriller”, de Michael Jackson (Veja as fontes deste ranking aqui).
** As referências de Susan McClary sobre Madonna podem ser encontradas no livro Feminine Endings: Music, Gender, and Sexuality (1991).

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