O poder da música em acionar construções identitárias demarcadoras de hábitos culturais em diferentes gerações é um processo conhecido e usual, do canto negro do blues à canção de protesto brasileira dos anos 60. Já nos recentes protestos políticos espalhados pelas ruas do Brasil, músicas também têm sido acionadas, compartilhadas e cantadas por jovens apoiadores deste movimento.

Uma canção muito compartilhada no momento na rede social Facebook é “Até Quando”, de Gabriel O Pensador, com o marcante refrão:

“Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!) / Até quando vai ficar sem fazer nada? / Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!) / Até quando vai ser saco de pancada?”

Já no perfil no Facebook do site musical Rock Em Geral, uma canção do Paralamas do Sucesso também era lembrada recentemente:

“A polícia apresenta suas armas / escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes / e a determinação de manter tudo em seu lugar”

https://youtu.be/XOA-OSmBipo

Abordando o período musical pós-segunda guerra mundial, Diego Fischerman (2004) explica que o papel predominante da juventude na formação de hábitos culturais propiciou o estabelecimento de um tipo de música – mediado pela indústria – que funcionava como um forte elemento formador de identidade comunitária e individual, pelo uso das “posições políticas de esquerda nos âmbitos intelectuais e universitários” (p. 75). Segundo Fischerman, seria uma arte caracterizada pelo domínio de estéticas de ruptura na arte culta, porém marcada por uma crescente associação entre os saberes acadêmicos e formas diversas de entretenimento, onde cresceu o gênero musical rock como marco cultural.

É em meio a tal associação de posições políticas e intelectuais que surgem compositores internacionais como Bob Dylan, que a partir de 1965, desenvolveria uma estética unindo rock e letras político-sociais. No Brasil, tal associação ficou conhecida como canção de protesto, muito difundida em meados dos anos sessenta nos festivais universitários e tendo à frente o cantor e compositor Geraldo Vandré, além de outros artistas com menor grau de envolvimento, porém muito populares no período, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Nara Leão e Elis Regina. A mola propulsora da canção de protesto era seu pressuposto em tornar os ouvintes – principalmente o público universitário – em agentes mais envolvidos nas questões políticas que regiam a música brasileira.

Segundo John Blacking (2007), música é “um sistema modelar primário do pensamento humano e uma parte da infraestrutura da vida humana. O fazer ‘musical’ é um tipo especial de ação social que pode ter importantes conseqüências para outros tipos de ação social. A música não é apenas reflexiva, mas também gerativa, tanto como sistema cultural quanto como capacidade humana” (p. 201).

Logo, a própria música em si já se apresenta como um poderoso processo informacional com consequências especiais de ação social. Ao abordar o “fazer musical” como uma forma de pensamento, Blacking nos ajuda a entender o poder que as construções sonoras possuem em acionar sensações, e desta forma, serem utilizadas de forma eficiente em diferentes propósitos comunicacionais.

https://youtu.be/RnIzdwdtsj4

É assim que podemos entender como que uma música sem palavras – no caso, a música instrumental – poderia repercurtir socialmente de forma reflexiva e remeter, por exemplo, à construção identitária da cultura negra como um processo de valoração, como seria o jazz. Ou uma música que, através de seus acordes e construções orquestrais, procure evocar sensações de grandiosidade, muito comum na era de Mozart e Beethoven.

E assim, observamos também toda uma construção identitária e política através da música no Brasil, articulando sonoridades, gêneros musicais e letras de canções. Nos anos 60, elas se davam, por exemplo, em embates nos famosos Festivais da Canção; nos 70, nas composições dos exilados e suas letras mutiladas pela censura; nas sonoridades eletrificadas da geração rock anos 80, cantando sobre uma Brasília desigual para além de construções modernistas; nas letras e mixagens sonoras do Mangue Beat sobre uma Recife antiquada que buscava a globalização tecnológica dos caranguejos com cérebro; nos raps das armas e da felicidade do Funk de Cidinho e Doca (Eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente / na favela onde eu nasci); e nos jovens de hoje em dia que, vias redes sociais, curtem, compartilham e se perguntam na internet: “até quando você vai levar porrada?”.

As sonoridades e os gêneros musicais variam, mas a função social da música permanece sendo acionada durante décadas como um poderoso processo comunicacional. De Geraldo Vandré a Cidinho e Doca, as sonoridades representam, inovam e refazem construções identitárias humanas. Qual música te representa?

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