Apesar de sempre alertarem para a importância do empoderamento feminino, os discursos das bandas que se apresentaram no Festival Roque Pense variam em diferentes graus de militância. Por exemplo: a Medialunas (do Rio Grande do Sul), constitui-se na dupla Liege Milk (bateria e voz) e Andrio Maquenzi (guitarra e voz). Ambos são músicos ativos na música independente nacional, tendo atuado em bandas como Loomer, Superguidis e também na atual Hangovers. O casal está junto há dez anos e a importância desta união foi ressaltada no palco por Liege Milk: “não somos uma banda de meninas, mas somos casados há dez anos e o Andrio sempre me incentivou a tocar. E juntos nós acabamos montando uma banda. Acreditem. O lugar da mulher é onde ela quer”.

Liege também é atuante no empoderamento feminino através da música: ela coordena a oficina de bateria Meninas na Batera e é instrutora de bateria na empresa Girls Rock Camp Brasil. Ambas as iniciativas atuam de modo a valorizar, através da música, a atuação da mulher na sociedade. No site Meninas na Batera, vemos uma descrição da oficina, dizendo tratar-se de “um projeto sociocultural que visa oferecer a meninas de 06 a 17 anos uma vivência musical, sem necessidade de conhecimento prévio. A atividade deve proporcionar às meninas o fortalecimento da auto-estima e empoderamento através da música, nesta fase de formação de caráter e auto-conhecimento, visando a formação de cidadãs mais conscientes, auto confiantes e sem medo de se expressar de forma alguma”.
Já o Girls Rock Camp Brasil é um acampamento diurno de férias exclusivo para meninas, que apresenta vivências musicais diversas, situado em Sorocaba (SP). Ele integra o Girls Rock Camp Alliance, uma aliança internacional de acampamentos para meninas. A importância das mulheres tocarem um instrumento e assumirem agora o papel antes relegado apenas aos homens é ressaltada no site Meninas na Batera:
“A bateria é um instrumento constantemente taxado como “masculino” na nossa sociedade. A porcentagem de mulheres que empunham baquetas, no mundo todo, é muito menor do que a de homens que o fazem. Contudo, enquanto instrumento percussivo e rítmico, a bateria é passível de expressão musical e corporal, bem como todos os outros instrumentos musicais. Temos no mundo todo, grandes bateristas mulheres, profissionais ou independentes, que devam estar fartas de ouvir frases como ‘Nossa! Você toca como um homem!’. Porquê não quebrar este paradigma, não é? Este é um dos objetivos deste projeto também”.
Assim como a Medialunas, de Liege Milk, a dupla Luvbugs também se apresentou no festival (no domingo, 20/10) e conta com a mesma formação, guitarra e vocais (a cargo de Rodrigo Pastore) e bateria (com Paloma Vasconcellos). Este tipo de formação minimalista, que dispensa o contrabaixo, tornou-se muito famoso a partir de bandas gringas como White Stripes e The Kills, e é muito prático tanto em gravações de estúdio quanto em viagens por turnês.
A ocupação feminina de instrumentos outrora relegados ao mundo masculino também pôde ser percebida no divertido show da Uh-la-la, no domingo. A banda apresentou um som influenciado por grupos new wave/punk, lembrando bandas como Blondie, B-52’s e Rezillos. Porém, nestas bandas e em diversas outras de new wave/punk anos 70/80, as mulheres apenas ocupavam o papel do vocal. Na Uh-la-la, vemos um espelho da mudança gradativa que a mulher vem protagonizando na sociedade.

O assunto foi tema de piada pela própria baixista do grupo: “tem gente que fala que lugar de mulher é na cozinha. A gente concorda!”, apresentando a baterista da banda (baixo e bateria são chamados de “cozinha” do rock). O grupo também conta com uma vocalista que toca pandeiro e sintetizador. As três meninas cantam, enquanto que um guitarrista e outro rapaz no sintetizador completam a formação. O som da Uh-la-la é divertido e escrachado, assim como a performance da banda. Estes signos comunicativos também evocam revolta: a rebeldia pelo humor, pelo escracho, pelo deboche, que o povo brasileiro sabe fazer tão bem.
O discurso de superação das diferenças sexistas também era ressaltado por Roberta Dittz, da Banda Canto Cego: “temos que dissolver as diferenças sociais, parar com as desigualdades do sexo feminino”. Roberta viu-se em meio a uma situação possivelmente constrangedora – sem se abalar – e que revela a maneira como os homens ainda lidam com mulheres em papel de destaque. No final do show da Canto Cego, Paulo Vitor apresentou a banda um por um, e na hora de apresentar Roberta Dittz, a plateia puxou o coro: “gostosa, gostosa, gostosa”. Imediatamente, Paulo Vítor respondeu: por favor galera, vamos respeitar!”.
Outra situação de enfrentamento foi protagonizada pela banda Visceral Leishmaniasis. O som pesado do grupo acionou prontamente uma rodinha de pogo. A vocalista, Luanna Nascimento, reclamou que não tinha mulher na roda: “vou ter que descer?”, desafiava ela. Instaurou-se ali uma verdadeira arena/coliseu do metal: a roda, que já havia sido aberta desde o início do festival, cresceu em tamanho e agressividade. Os participantes bradavam: “mosh, mosh, mosh”, simulando um coliseu sedento de sangue – mas aqui, de forma simbólica: a sede era pela sensação caótica que o metal produz, um espaço territorial (quase sempre em frente ao palco) que aciona simbolismos e performances.

Em shows de heavy metal (e seus subgêneros), o participante pode pular, socar o ar e bater cabeça em seu próprio lugar, mas não terá o mesmo simbolismo de ocupar o espaço presencial do grande coliseu do metal, a roda de pogo. No show da Visceral Leishmaniasis, a roda comia solta, até que um participante subiu ao palco, arrancou o microfone da mão da vocalista e ameaçou um dos participantes de porrada. Luanna tomou o microfone de volta, deu uma bronca no participante, botou ordem e reorganizou a roda, ressaltando a necessidade de que esta seja feita com respeito e paz, sem violência.
Reparei que haviam poucas mulheres participando da roda (duas ou três no máximo). Neste dia, a plateia do festival era de presença predominantemente masculina, ambos usando roupas pretas e adereços relacionados ao universo simbólico do rock pesado. Havia apenas algumas mulheres na plateia, formada por jovens e adolescentes, além de muitos skatistas aproveitando a boa e ampla pista do Paço Municipal de Mesquita.
Outra ausência de mulheres foi lembrada durante o show da banda Anti-corpos: a equipe técnica de áudio. A vocalista, Rebeca Domiciano, destacou a importância de empoderamento das mulheres não apenas nos instrumentos, mas também nas ocupações profissionais na música. A Anti-corpos se apresenta como “uma banda lésbica feminista de hardcore”. A Anti-corpos se apresenta como “uma banda lésbica feminista de hardcore”. Mas, suas letras não são focadas na discussão da homossexualidade, e sim no ativismo feminista, como em Meia Boca (“foi me empurrar contra a parede / e me pressionar / questionar meu feminismo / está do lado de lá ou do lado de cá?”), Pró-Escolha (“Até gravidez passa a ser uma punição / a todas vocês que exigem autonomia / na decisão sobre o seu corpo, sua vida”) e Mãe Solteira (“passa perrengue, já foi estuprada / fez aborto, foi violentada / batalha, batalha, com garra, com raça”). Depois do show, Paulo Vítor ressaltou que naquele dia haviam realizado a oficina “Recursos de áudio para shows”, em resposta à crítica da Anti-corpos à falta de mulheres trabalhando como engenheiras de som.
A questão da homossexualidade é debatida de forma mais direta pela dupla Santa Claus. As meninas (Claudia Rom na voz e sintetizador; e Bruna Provazi na guitarra) fecharam a noite de sábado (19/10) apresentando um som dançante que mistura música eletrônica com rock. As letras da dupla abordam com bom humor questões ligadas ao lesbianismo, por vezes de forma direta. Elas apresentaram a canção Batizada, que segundo a vocalista, é sobre iniciação homossexual, “com ajuda daquela amiga hétero”: “acho que você vai gostar / certeza, você vai pirar / mas cuidado pra não viciar em mim”. Na música Bebendo Vodka, podíamos notar uma abordagem homossexual presente na letra (entendida pelo fato de ter sido cantada por uma menina): “sentada ali bebendo vodca ela nem nota/ o meu olhar fulminante ela ignora / crio coragem e me aproximo / ela me esnoba / ela sorri, vira o copo e cai fora”. Desapego brinca com um trocadilho: o que você acharia de acordar todo dia / e ver que onde estou é na sapataria?”. A música foi anunciada desta forma pela vocalista: “mulher casada não pode cantar essa”.

Lembranças Proibidas foi apresentada por Claudia Rom como “uma carta que deveria ter chegado a um abusador e não chegou”. A letra é explícita sobre abuso sexual: “você se aproveitou de toda a minha ingenuidade / e me ensinou a descobrir certas coisas / muito antes de todas as minhas amigas / que só foram conhece-las quando adultas”. A música ganhava instrumentação ruidosa – um típico punk eletrônico – com guitarra pesando na distorção, e a guitarrista utilizando power chords (acordes tocados com todas as cordas da guitarra, de forma simultânea) para simular uma sonoridade densa e agressiva, como pede a letra da canção. No final do show, Claudia Rom ressaltava: a gente tem que correr atrás para que no futuro seja normal ter uma mulher no palco, ninguém falar: ‘ih, uma menina tocando”.
O festival também apresentou outras bandas misturando rock, eletrônico e meninas no vocal: a Subburbia, de Curitiba, intercalava som pesado com eletrônico e os vocais de Emil (baixo e voz) e Marina (guitarra e voz). No mesmo dia (domingo 20/10) a Far From Alaska fechou o festival, atraindo muito público. Ainda que não apresentassem um som ligado ao heavy metal, acionaram uma roda de pogo onde – finalmente – muitas mulheres participaram. A roda de pogo é uma performance estritamente agressiva (ainda que não com o intuito de agressão física) e que aciona força ligada à masculinidade. Tais acontecimentos (e a participação ou ausência feminina neles) são de caracterização complexa, como bem afirma Jeder Janotti (2013): são articulações que “não são simples nem duais, pois estão conectadas à presença do feminino não só no mundo da música bem como a seus posicionamentos na cultura contemporânea. Essas articulações se apresentam de formas contraditórias e complexas, podendo incorporar valores sexistas bem como tensionar esses mesmos valores de modo performativo” (p. 11 e 12).

O festival chegava ao fim em um belo ritual de encerramento. Paulo Vítor subia ao palco anunciando que “é com tristeza que encerramos o Festival Roque Pense, um festival onde as mulheres dominaram. Vamos dar voz às mulheres”, e passava o microfone à Giordana. A produtora encerrou ressaltando que “mulheres também sabem fazer rock n’ roll”, citando mais uma vez a homenageada do festival, Armanda Álvaro Alberto e a hashtag #somostodasarmanda.
A equipe subiu ao palco em um grande agradecimento ao público. A DJ Karina Gomez emendava uma sequência de duas músicas temáticas que fechavam com perfeição a temática do festival: “Femme Fatale”, de Velvet Underground & Nico e Como Nossos Pais, de Belchior, na voz de Elis Regina: “Você pode até dizer / que eu tô por fora / ou então que eu tô inventando / mas é você que ama o passado e que não vê / que o novo sempre vem”. Ainda há perigo nas esquinas. E muito o que se fazer. Que venha o novo!
– Saiba mais sobre o Roque Pense aqui.
– Veja mais fotos do festival.
– Leia a primeira parte da resenha.
– Confira a resenha da Sessão Roque Pense no Cineclube Buraco do Getúlio.

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